sábado, 10 de julho de 2010

Poesia de Mário Andrade

O valioso tempo dos maduros.
Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para a frente do que já vivi até agora.

Tenho muito mais passado do que futuro.

Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas.

As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço.

Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.

Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflados.

Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram,cobiçando seus lugares, talentos e sorte.

Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha.

Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar da idade cronológica, são imaturos.

Detesto fazer acareação de desafectos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário geral do coral.

"As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos".

Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência,minha alma tem pressa...

Sem muitas cerejas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana,que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade.

Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade.

O essencial faz a vida valer a pena.

E para mim, basta o essencial!

terça-feira, 6 de julho de 2010

A minha simples homenagem à escritora Matilde Rosa Araújo, morreu hoje aos 89 anos de idade.

O meu gosto pela leitura começa com os seus livros,contos e poesia ...

















O SOL E O MENINO DOS PÉS FRIOS

Era uma vez uma casa.
Muito grande.
Com um tecto altíssimo, nem sempre azul.
Uma casa enorme onde habitava uma grande família.
Uma família tão grande que, por vezes, não julgavam os seus membros que se conheciam.
E se deviam amar.
Houve um menino que entrou nesta casa estava ela toda branca.
No chão tapetes de neve, cristais de água de uma brancura que estremecia.
E as próprias árvores escorriam essa brancura.
E frio.
Iluminava-a uma estrela tão brilhante que, sobre o tecto, parecia que poisava sobre as nossas mãos.
Ora um dia, em que fazia anos em que esse menino entrara nessa casa, outro menino por ela andava com frio.
Pelo chão, pelos milhões de cristais, caminhavam os seus pezitos enregelados.
Tanto frio que nem podia olhar a estrela brilhante.
Nem os milhões de cristais que pisava.
Uma mulher chorava a um canto dessa casa.
E era triste essa mulher.
Estava triste e cansada.
Na casa nem tudo era belo.
Ali estava aquele menino cheio de frio.
E, como ele, tantos meninos.
E, já há quase dois mil anos, um menino entrara na asa, que ficou mais clara com a luz brilhante do tecto.
O menino entrou só para dizer uma palavra pequenina:
AMOR.
Então essa mulher perguntou ao menino dos pés frios:
– Tu não tens a tua casa?
O menino olhou a mulher triste e ficou triste.
Ambos estavam tristes.
E disse quase envergonhado que não.
– Tu não tens roupa?
Sapatos?
Um lume?
Pão?
A cabeça (tão linda!) do menino ia abanando sempre a dizer não.
A mulher triste começou a ter vergonha.
Então ela consentia que na sua casa, na casa de todos, de tecto nem sempre azul, houvesse um menino sem roupa, sem lume, sem pão?
Ela consentia uma coisa assim?
E os outros também?
Escorregaram-lhe pela face já enrugada duas lágrimas transparentes.
De água.
Água como a que tombava do tecto, como a que se estendia nos mares.
E perguntou mais ao menino:
– E para onde vais?
Eu dou-te qualquer coisa para o caminho...
O menino olhou para ela admirado.
Não lhe disse para onde ia.
Observou-lhe apenas:
– Tens duas gotas de água nos teus olhos que reflectem o céu azul e a lâmpada do tecto.
Não sentes?
A mulher deixou cair pelo rosto enrugado as duas lágrimas.
A pele, então, ficou-lhe mais lisa.
E ela tornou-se menos curva.
Ergueu-se.
Estendeu, sorrindo, os dois braços ao menino.
E disse:
– Fica.
Perdoa.
E o menino ficou.
Nos seus braços.
Encostado ao seu peito.
Com os pés aquecidos sobre o campo de neve.
E a mulher entendeu que não adiantava chorar ao canto da casa.
E o seu vestido era uma bandeira.
E o seu coração uma flor.
Com o menino a seu lado.

Funchal

Funchal